Sou da escrita. Desde sempre, sou da escrita. Desde
o vagido retardado de um nascimento moroso, desde a muda timidez do olhar
crescendo assustado pela imensidão descoberta na estranheza das coisas, virado
para dentro no fascínio de uma imensidão escondida maior, mais estranha. Sou da
escrita desde o bloqueio da sociabilidade, certa prostração da fala perante
quase todas as conversas, afastadas de mim nos ares ventosos da sua vacuidade
ou entranhadas no mar opaco de uma inacessível densidade. Entre a
insignificância e o desperdício, desde sempre me refugiei, diferente, na
escrita, mergulho apaixonado na minha própria intimidade labiríntica,
interlocutor de mim mesmo numa ironia sem fim. Uma fuga.
Sou da escrita. Desde sempre, sou da escrita. Sangrei
para gavetas pacientes, durante décadas, o fluido de todas as feridas do mundo,
observadas ou sofridas, estigmatizadas ou auto-infligidas. E, em todos os sangramentos,
calei-me ao rodar da chave sobre as páginas cicatrizadas. Um dia, porém, as gavetas,
porventura fartas, regurgitaram a sua voracidade vampiresca no grito em que enfim
me devolveram ao mundo, numa centelha de palavras esvoaçantes. E publiquei-me.
Sou da escrita. Continuo a ser da escrita, mesmo se
o meu silêncio nela se transforma em comunicação através dela, mesmo se, de
eremitério, ela se transforma em convivência. Encontro agora, neste exercício de
dizer-me a mim mesmo, um sentido maior de dizer-me ao outro, de dizer o outro a
si próprio quando ele a si próprio se lê em tudo o que em silêncio me escrevo.
Sou da escrita. Serei sempre da escrita, único meio
de imortalidade na cidade dos homens. Porque as palavras ditas expiram quase
todas no próprio ato de dizê-las, sepultadas nos ouvidos que apressadamente as
esquecem. Serei sempre da escrita, não porque seguirei escrevendo, mas porque
já me escrevi todo até onde pude, nas linhas publicadas e nos rascunhos que as
gavetas ainda ruminam. E continuarei a escrever, não para dizer-me mais, mas na
busca de dizer-me melhor, eterno aprendiz de feiticeiro manejando as palavras
como ingredientes mágicos.
Sou
da escrita. Para sempre.
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