Vou voltar para casa!
Há dois anos que conto os dias que me arrancaram às
leivas serranas e me arrastaram para Tancos, onde um apregoado «milagre»
treinou as minhas mãos afeitas à sachola para as engatilhar na luisinha que
os bifes me entregaram quando aqui desembarquei. Depois arrastaram-me por estas
Franças adentro, mai-los meus camaradas, até nos porem a cavar as trincheiras
onde nos emparedaram, a morte zumbida em tiros sobre as nossas cabeças igual à
que rastejava aos nossos pés, nos ratos esfaimados que nos roíam a sola gasta
das botas encharcadas, t’arrenego! Só mais rápida, por isso muitos dos nossos
preferiram rasgar fardas e pele no arame farpado e aventurar-se pelo campo
aberto, onde haviam de acabar tombados de um susto na lama da terra de ninguém,
a mesma da vala imunda onde definhávamos lentos, à míngua de comida, calor e
carinho dos nossos.
Sulcos na terra só antes conhecia os do meu arado,
onde a gente botava a semente que havia de morrer para as nossas vidas. Mas
aprendi nas trincheiras que há covas abertas como valas comuns a perder de
vista, onde somos semeados para uma morte que não aproveita a ninguém. De um
lado e de outro, é indiferente, pois é pelo fruto que se conhece a árvore e
pela planta que se avalia a semente e nada resta para ver quando acabamos todos
mastigados pela mesma terra, retalhada por obuses que a ensurdecem para a
diferença das línguas.
Posso falar disto agora porque vou voltar para
casa. O pesadelo acabou e os senhores da guerra decidiram a paz. Os dois lados
encontraram-se, não a surdir das valas de armas na mão a cuspir morte, mas
entrando para uma carruagem de comboio empunhando canetas para se comprometerem
por escrito. Há quem diga que a razão de ser num comboio foi para manter a
localização secreta, outros afirmam que foi para que todos se sentissem em
terreno neutro, como a terra de ninguém onde se misturam cadáveres de todas as
fardas. Os senhores da guerra decidiram a paz, mas eu, humilde português
desconfiado, interrogo-me sobre a seriedade de tal decisão. Estaria o comboio
parado na hora de firmar a escrita das convicções? Ou terão as sacudidelas do
vagão feito as assinaturas tremer de falsas? E a tinta permanente que pingou
dos aparos titulares, não virá a ser apagada no futuro pela malícia dos
herdeiros?
Não me importa isso agora, que vou voltar para
casa. O pesadelo acabou e eu sobrevivi, muito graças às curvas da sorte e à
bênção de Deus, um pouco também à minha desajeitada perícia de camponês a
imitar soldado, bem haja eu. Se calhar foi tudo obra da Senhora vestida de luz
que apareceu lá pelas serras do meu torrão e cuja proteção todos os meus esfolaram
os joelhos a suplicar. A todos agradeço e o que mais quero é regressar,
sentar-me à lareira e aquecer os pés até queimar neles a lembrança da lama das
trincheiras, roer a boa da côdea caseira que me faça esquecer os enlatados com
cheiro de fábrica. E depois coser os dedos à sachola até despegar deles os
tiques de ceifar vidas que a luisinha me ensinou.
Vou voltar para casa e quero apagar de mim estes
dois anos de vida que a guerra me tirou na morte a que me fez convidado. Bem
tive que me esforçar para não aceitar o convite, cáspite!...
Vou voltar para casa e limpar a memória. Mas a data
de hoje, 11 de novembro, essa nunca hei de esquecê-la. Nem daqui a cem anos!...
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