A infância dele foi tingida de encarnado (porque
era um tempo em que não se podia dizer «vermelho»). Do amplo terraço do oitavo
andar onde morava podia ver-se, acima dos prédios e do gradeado das antenas de
televisão, o terceiro anel incompleto do estádio a que sempre ouvira chamar «a
catedral». Aos domingos à tarde, a Emissora Nacional ocupava a atmosfera da
casa com o relato do jogo do «Glorioso», que era seguido com a emoção de uma
causa maior do que a vida. E havia um nome pronunciado com solenidade heróica,
mesmo quando se tratava apenas de uma evocação.
A infância dele foi tingida de encarnado (porque
era um tempo em que não se podia dizer «vermelho»). O seu pai, com o honesto
rigor que o caracterizava, recordava-lhe a epopeia das duas taças europeias
conquistadas em anos sucessivos. E da terceira, perdida entre os ecos do hino
comemorativo que já se ensaiava. E recordava também a batalha de Inglaterra,
quatro anos depois, em que os portugueses, onde pontificavam vários homens do
clube encarnado, mais uma vez assumiram a sina histórica de serem vencidos de
cabeça erguida. E havia sempre um nome pronunciado com solenidade heróica.
A infância dele foi tingida de encarnado (porque
era um tempo em que não se podia dizer «vermelho»). A transmissão televisiva
era um acontecimento esporádico imperdível, uma exceção nos hábitos de
frugalidade mediática do país ensimesmado, um luxo reservado para a
intermitente ousadia europeia de uma meia final da Taça dos Campeões ou para a
propaganda anual do Jamor, em dia de final da Taça de Portugal. Ainda mais rara
foi a possibilidade de observar, no tímido preto e branco do cinescópio da Schaub-Lorenz, o homem a quem correspondia
o nome sempre pronunciado com solenidade heróica. A força e tenacidade, a
vontade inquebrantável, a eficiência demolidora. A simplicidade de modos, a
absoluta despretensão, a alegria verdadeiramente desportiva. O prazer de fazer
o que se gosta e o desejo indómito de continuar a fazê-lo.
A
infância dele foi tingida de encarnado (porque era um tempo em que não se podia
dizer «vermelho»). Encarnado: para ele, naquele tempo, era essa a cor do
Pantera Negra.
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