domingo, 29 de maio de 2016

Texto sexagésimo quarto

O valor de um gesto mede-se pelo seu alcance libertador, não pelo desenho que o limita. Tomar-te a mão direita na minha mão esquerda, enlaçar-te pela cintura com a minha mão direita enquanto poisas a tua esquerda sobre o meu ombro, trocarmos olhares no brilho daquela cumplicidade gémea que só nós sabemos. Esperar, no equilíbrio dos corpos direitos, entre a tensão e o desembaraço. Mover-me, soltar os passos na cadência da música, conduzir-te nos requebros que desenhamos dentro do exíguo espaço que o mundo nos permite. E recordar: os corpos arriscados na solenidade airosa do voltear da valsa, a mente focada no alcance do gesto. A memória.
O valor de um gesto mede-se pelo seu alcance libertador, não pelo desenho que o limita. Tomar o teu corpinho recém-nascido na trémula carícia das minhas mãos juntas, comovidas. Olhar-te sabendo que ainda não podes ver-me, sussurrar o teu nome acreditando que reconheces a minha voz desde antes, desde sempre. Abraçar-te no mero aperto dos dedos a que a tua pequenez me limita. E sonhar: os corpos constrangidos pela desproporção que os afasta, a mente liberta nos horizontes sem fim onde poderemos sempre encontrar-nos.
O valor de um gesto mede-se pelo seu alcance libertador, não pelo desenho que o limita. Tomar nas mãos o teu corpinho recém-nascido vale toda a minha vida, tal como enlaçarmo-nos na solenidade airosa do voltear da valsa. São gestos presos um ao outro pela corda dos anos, unidos pelos dias desses anos, pelas horas desses dias, pelos minutos dessas horas. São o mesmo gesto, que nunca deixei de fazer. E são sempre outros, porque me transformo na continuidade de fazê-los, porque me transformas na continuidade de fazê-los.
O valor de um gesto mede-se pelo seu alcance libertador, não pelo desenho que o limita. Senti que te libertava para a vida que não sabias quando tomei nas mãos o teu corpinho recém-nascido. E agora sinto que te liberto para a vida que eu não sei, ao enlaçar-te e conduzir-te nos requebros da valsa. Chamam-lhe «Baile de Finalistas» e ajustam-lhe o ritual burguês desta dança de pai e filha como um corolário de qualquer coisa. Mas enganam-se os que veem nisto apenas a convenção de um desenho fechado. Porque o compasso ternário em que quase rodopiámos é um recomeço, a forma aberta de uma espiral de vida em que te tornaste verdadeiramente livre. E resta-me continuar, agora a uma justa distância, a repetir o mesmo gesto outro. E olhar contigo, na cumplicidade gémea que só nós sabemos, os horizontes sem fim onde poderemos sempre encontrar-nos.

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