Olho-me ao espelho bem iluminado, que a
brancura das paredes apertadas torna mais luzidio. Aprecio a tonalidade clara
da pele do meu rosto, que uniformizei cuidadosamente com a aplicação de uma
camada muito fina de base baça. Reconheço o brilho expressivo dos meus olhos
negros amendoados, acentuados pelo risco que acabei de traçar e
indubitavelmente valorizados pela sombra bicolor que me amadurece o olhar sem
me mascarar a frescura juvenil. Abano suavemente a cabeça, para apreciar o
voltear livre dos cabelos negros, normalmente ondulados, que optei por esticar
para que me caiam direitos sobre a base do pescoço, com singeleza e
circunspeção. Sinto-me bonita, mas ainda não completa. Falta o retoque nos
lábios e depois a roupa. Mais uma vez olho para o estojo de maquilhagem muito
bem apetrechado que tenho diante de mim e a que sempre recorro em momentos como
este, em que a construção da aparência, muito mais do que a simples montagem de
um adorno, é ao mesmo tempo uma afirmação estética e uma opção estratégica
decisiva para o sucesso.
Opto por reforçar a cor natural dos
lábios, acentuando o seu desenho curvilíneo e conscientemente sedutor. Sorrio
diante do espelho. Agrada-me o efeito da minha boca aveludada que se entreabre
num convite moderado. Um pouco mais de abertura e a visibilidade dos meus
dentes muito brancos e certos torná-la-á irresistível.
Consulto o relógio de pulso. Pego no frasco de perfume de baunilha e
frutos maduros, cuja fragrância envolvente e aveludada aprecio deveras, e
vaporizo levemente o pescoço e o peito. Arrumo o estojo de maquilhagem sem
pressa, mas não deixo de experimentar um certo atabalhoamento dos gestos, uma
dificuldade de executar tudo com precisão. O nervosismo ameaça apoderar-se de
mim, à medida que o tempo escorre para o momento inevitável. E sinto frio.
Apesar da porta fechada, da pequenez aconchegante do espaço onde me encontro,
da intensa luz branca que ricocheteia em todas as paredes brancas e do espelho
que me devolve, num reflexo fulgurante, a convincente imagem de mim própria,
deixo-me abalar por um arrepio atemorizante, uma espécie de vento de susto,
qualquer coisa como uma corrente de ar vinda do íntimo. É isto que eu quero,
mas não tenho a certeza do meu desejo de estar aqui, não estou segura do que me
preparo para fazer.
Levanto-me, afasto a cadeira onde
estive sentada e recuo um passo. Miro-me de corpo inteiro ao espelho. Esfrego
uma na outra as mãos frias, prolongo o toque entrelaçado dos dedos macios, coço
as palmas brancas com as unhas sem verniz. Depois acaricio os ombros nus,
ajusto as alças do soutien cor de
pele que me afirma os seios atraentes e proporcionados, contorno a silhueta do
meu corpo bem modelado até às ancas. Observando a saia de tailleur preta que envergo, muito clássica na sua absoluta
simplicidade, lembro-me da longa hesitação sobre a sua adequação ao momento e
de como se defendera a preferência por um conjunto de casaco e calça, sob o
argumento de uma maior proteção da minha integridade física. Alegro-me por ter
conseguido, não obstante, impor a minha proposta, pois verifico que a saia
realça incomparavelmente melhor a minha feminilidade, caindo travada sobre os
joelhos e destacando-me o perfeitíssimo desenho das pernas, cobertas por umas
finas meias incolores. E, se é certo o maior perigo a que esta indumentária me
expõe, a verdade é que esse é um risco que me disponho a correr em nome de uma
aposta de tudo ou nada que me parece necessário fazer.
Calço os sapatos de salto médio que
erguerão a minha envergadura de um metro e setenta à altura de um confronto
suficientemente equilibrado com o prisioneiro diante de quem me apresentarei e
que, por ser mais alto, se sentirá numa superioridade dominadora que estou
disposta a consentir-lhe. Pelo menos aparentemente. De uma cruzeta suspensa de
um varão pende a blusa azul que retiro e visto, abotoando-a na frente com
irreprimível frenesim. Hesito entre entalá-la na saia ou deixá-la simplesmente
pender sobre ela, de modo subtilmente negligé.
Decido-me pela segunda possibilidade, porque se identifica mais comigo e porque
serve melhor o objetivo do que vai acontecer.
Miro-me novamente ao espelho, antes de
vestir o casaco preto que completa o tailleur.
Recordo ainda a discussão sobre a escolha da cor preta, que fará a minha figura
diluir-se no espaço da sala, uma vez lá dentro. Lembro-me de que isso foi
apontado como uma vantagem, um trunfo – como então foi dito – contra o qual
nenhum dos argumentos contrários logrou prevalecer.
Visto e ajusto o casaco, sem o apertar.
Consulto novamente o relógio de pulso e sinto-me estremecer de emoção. Esperava
este momento, dediquei-me a ele numa preparação simultaneamente paciente e
ansiosa. Cheguei aqui discreta e anónima, completamente despojada desta figura
modelada e consistente em que acabo de me tornar. Tomo consciência de que
esperei até ao último instante possível para me revestir desta imagem que agora
o espelho me devolve, num reflexo da metamorfose interior que operei.
Pego na carteira, que ponho ao ombro, e
na pasta de mão, onde guardei tudo aquilo de que irei necessitar. A carteira
faz conjunto com os sapatos, na simplicidade das suas linhas elegantes, e tem
uma alça composta de finos aros metálicos, presos nas extremidades com umas
fivelas que reproduzem o desenho das aplicações dos sapatos. Quanto à pasta de
mão, tive o cuidado de escolher um exemplar despretensioso, que não
evidenciasse linhas exclusivas ou marcas sonantes, que em nada condiriam com a
minha condição de praticamente estreante neste tipo de situações.
Olho-me mais uma vez ao espelho. Sou eu
mesma, Cândida, a repórter enviada pela redação do jornal para entrevistar o
controverso prisioneiro que enviou aquelas estranhas mensagens por carta. Estou
pronta, agora. Sei que é suposto que o estivesse já antes, que não deixasse
para os derradeiros momentos estes preparativos exteriores em que me demorei.
Porém, este modo de proceder faz parte do meu processo de abordagem da
situação. É o meu método para conseguir uma maior tranquilidade pelo
retardamento da sensação de prontidão: a ocupação do tempo que resulta do
atraso e prolongamento dos preparativos inibe a expansão do nervosismo, que se
acentua nos instantes de espera passiva. Não foi fácil dar a entender isto,
recordo a teimosia com que insisti para, contra todas as regras, retardar ao
limite o processo de transformação. A cedência, enfim, não foi um
reconhecimento, mas antes uma aposta no valor do efeito de surpresa que
conseguirei provocar. Sobre mim própria, principalmente.
Abro a porta e saio para o corredor
escuro. Fecho os olhos, respiro fundo, sinto o descompasso do batimento
cardíaco, controlo a respiração. Sei o que me espera, mas não tenho a certeza
de conseguir lidar com o momento real, no qual circunstâncias inesperadas
poderão tornar inútil toda a antecipação que fiz. E, mais uma vez, insinua-se
em mim a incerteza quanto à vontade de estar aqui, a insegurança quanto ao que
me preparo para fazer.
Oiço passos, ao fundo, embrulhados num
bizarro marulho metálico. Mantenho os olhos fechados. Pressiono as pálpebras,
quero virar-me toda mais para dentro de mim própria, concentrar as energias num
gesto de compressão física que me foque no meu íntimo, que me recorde a coragem
de chegar até aqui e me reconcilie com a urgência e o sentido de tudo isto.
Sinto que ele passa por mim, mas ignoro. Quero sentir-me só, pois, neste breve
instante, eu própria sou a única pessoa que preciso de enfrentar.
Abro finalmente os olhos. Sinto a respiração mais suave, o ritmo
cardíaco normalizado. Avanço pelo corredor, em direção à porta da sala. Chegou
o momento.
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