domingo, 1 de maio de 2016

Ficção XV - Chegou o momento

Olho-me ao espelho bem iluminado, que a brancura das paredes apertadas torna mais luzidio. Aprecio a tonalidade clara da pele do meu rosto, que uniformizei cuidadosamente com a aplicação de uma camada muito fina de base baça. Reconheço o brilho expressivo dos meus olhos negros amendoados, acentuados pelo risco que acabei de traçar e indubitavelmente valorizados pela sombra bicolor que me amadurece o olhar sem me mascarar a frescura juvenil. Abano suavemente a cabeça, para apreciar o voltear livre dos cabelos negros, normalmente ondulados, que optei por esticar para que me caiam direitos sobre a base do pescoço, com singeleza e circunspeção. Sinto-me bonita, mas ainda não completa. Falta o retoque nos lábios e depois a roupa. Mais uma vez olho para o estojo de maquilhagem muito bem apetrechado que tenho diante de mim e a que sempre recorro em momentos como este, em que a construção da aparência, muito mais do que a simples montagem de um adorno, é ao mesmo tempo uma afirmação estética e uma opção estratégica decisiva para o sucesso.
Opto por reforçar a cor natural dos lábios, acentuando o seu desenho curvilíneo e conscientemente sedutor. Sorrio diante do espelho. Agrada-me o efeito da minha boca aveludada que se entreabre num convite moderado. Um pouco mais de abertura e a visibilidade dos meus dentes muito brancos e certos torná-la-á irresistível. 
Consulto o relógio de pulso. Pego no frasco de perfume de baunilha e frutos maduros, cuja fragrância envolvente e aveludada aprecio deveras, e vaporizo levemente o pescoço e o peito. Arrumo o estojo de maquilhagem sem pressa, mas não deixo de experimentar um certo atabalhoamento dos gestos, uma dificuldade de executar tudo com precisão. O nervosismo ameaça apoderar-se de mim, à medida que o tempo escorre para o momento inevitável. E sinto frio. Apesar da porta fechada, da pequenez aconchegante do espaço onde me encontro, da intensa luz branca que ricocheteia em todas as paredes brancas e do espelho que me devolve, num reflexo fulgurante, a convincente imagem de mim própria, deixo-me abalar por um arrepio atemorizante, uma espécie de vento de susto, qualquer coisa como uma corrente de ar vinda do íntimo. É isto que eu quero, mas não tenho a certeza do meu desejo de estar aqui, não estou segura do que me preparo para fazer.
Levanto-me, afasto a cadeira onde estive sentada e recuo um passo. Miro-me de corpo inteiro ao espelho. Esfrego uma na outra as mãos frias, prolongo o toque entrelaçado dos dedos macios, coço as palmas brancas com as unhas sem verniz. Depois acaricio os ombros nus, ajusto as alças do soutien cor de pele que me afirma os seios atraentes e proporcionados, contorno a silhueta do meu corpo bem modelado até às ancas. Observando a saia de tailleur preta que envergo, muito clássica na sua absoluta simplicidade, lembro-me da longa hesitação sobre a sua adequação ao momento e de como se defendera a preferência por um conjunto de casaco e calça, sob o argumento de uma maior proteção da minha integridade física. Alegro-me por ter conseguido, não obstante, impor a minha proposta, pois verifico que a saia realça incomparavelmente melhor a minha feminilidade, caindo travada sobre os joelhos e destacando-me o perfeitíssimo desenho das pernas, cobertas por umas finas meias incolores. E, se é certo o maior perigo a que esta indumentária me expõe, a verdade é que esse é um risco que me disponho a correr em nome de uma aposta de tudo ou nada que me parece necessário fazer.
Calço os sapatos de salto médio que erguerão a minha envergadura de um metro e setenta à altura de um confronto suficientemente equilibrado com o prisioneiro diante de quem me apresentarei e que, por ser mais alto, se sentirá numa superioridade dominadora que estou disposta a consentir-lhe. Pelo menos aparentemente. De uma cruzeta suspensa de um varão pende a blusa azul que retiro e visto, abotoando-a na frente com irreprimível frenesim. Hesito entre entalá-la na saia ou deixá-la simplesmente pender sobre ela, de modo subtilmente negligé. Decido-me pela segunda possibilidade, porque se identifica mais comigo e porque serve melhor o objetivo do que vai acontecer.
Miro-me novamente ao espelho, antes de vestir o casaco preto que completa o tailleur. Recordo ainda a discussão sobre a escolha da cor preta, que fará a minha figura diluir-se no espaço da sala, uma vez lá dentro. Lembro-me de que isso foi apontado como uma vantagem, um trunfo – como então foi dito – contra o qual nenhum dos argumentos contrários logrou prevalecer.
Visto e ajusto o casaco, sem o apertar. Consulto novamente o relógio de pulso e sinto-me estremecer de emoção. Esperava este momento, dediquei-me a ele numa preparação simultaneamente paciente e ansiosa. Cheguei aqui discreta e anónima, completamente despojada desta figura modelada e consistente em que acabo de me tornar. Tomo consciência de que esperei até ao último instante possível para me revestir desta imagem que agora o espelho me devolve, num reflexo da metamorfose interior que operei.
Pego na carteira, que ponho ao ombro, e na pasta de mão, onde guardei tudo aquilo de que irei necessitar. A carteira faz conjunto com os sapatos, na simplicidade das suas linhas elegantes, e tem uma alça composta de finos aros metálicos, presos nas extremidades com umas fivelas que reproduzem o desenho das aplicações dos sapatos. Quanto à pasta de mão, tive o cuidado de escolher um exemplar despretensioso, que não evidenciasse linhas exclusivas ou marcas sonantes, que em nada condiriam com a minha condição de praticamente estreante neste tipo de situações.
Olho-me mais uma vez ao espelho. Sou eu mesma, Cândida, a repórter enviada pela redação do jornal para entrevistar o controverso prisioneiro que enviou aquelas estranhas mensagens por carta. Estou pronta, agora. Sei que é suposto que o estivesse já antes, que não deixasse para os derradeiros momentos estes preparativos exteriores em que me demorei. Porém, este modo de proceder faz parte do meu processo de abordagem da situação. É o meu método para conseguir uma maior tranquilidade pelo retardamento da sensação de prontidão: a ocupação do tempo que resulta do atraso e prolongamento dos preparativos inibe a expansão do nervosismo, que se acentua nos instantes de espera passiva. Não foi fácil dar a entender isto, recordo a teimosia com que insisti para, contra todas as regras, retardar ao limite o processo de transformação. A cedência, enfim, não foi um reconhecimento, mas antes uma aposta no valor do efeito de surpresa que conseguirei provocar. Sobre mim própria, principalmente.
Abro a porta e saio para o corredor escuro. Fecho os olhos, respiro fundo, sinto o descompasso do batimento cardíaco, controlo a respiração. Sei o que me espera, mas não tenho a certeza de conseguir lidar com o momento real, no qual circunstâncias inesperadas poderão tornar inútil toda a antecipação que fiz. E, mais uma vez, insinua-se em mim a incerteza quanto à vontade de estar aqui, a insegurança quanto ao que me preparo para fazer.
Oiço passos, ao fundo, embrulhados num bizarro marulho metálico. Mantenho os olhos fechados. Pressiono as pálpebras, quero virar-me toda mais para dentro de mim própria, concentrar as energias num gesto de compressão física que me foque no meu íntimo, que me recorde a coragem de chegar até aqui e me reconcilie com a urgência e o sentido de tudo isto. Sinto que ele passa por mim, mas ignoro. Quero sentir-me só, pois, neste breve instante, eu própria sou a única pessoa que preciso de enfrentar.
Abro finalmente os olhos. Sinto a respiração mais suave, o ritmo cardíaco normalizado. Avanço pelo corredor, em direção à porta da sala. Chegou o momento.

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