domingo, 22 de maio de 2016

Ficção XVII - Aqui (do livro «Pena Máxima», excerto do capítulo 4)

Ainda estou debruçado sobre a mesa, colocando o cinzeiro na rigorosa posição que lhe cabe, quando percebo que ela acaba de chegar. Não é o toque quase impercetível dos sapatos de salto médio no sobrado, nem qualquer outro ruído ou indício, que me dão a noção da sua presença. Trata-se de uma intuição apurada, que sei ativar em grau absoluto nestas circunstâncias, que me permite captar tudo o que ocorre no espaço envolvente.
Sem endireitar o corpo, ergo a cabeça muito devagar, fixando o olhar na parede espelhada para observar o reflexo da imagem dela, ao fundo, à esquerda, no local da porta, o único acesso de entrada. Sem denunciar qualquer emoção no meu rosto de uma inexpressividade rigidamente controlada, não deixo de apreciar a figura dela, simultaneamente frágil e curiosa, parada junto à porta numa posição estática que parece animada por um impulso de locomoção, como se, dentro dela, o receio daquilo que a aguarda meça forças com o desejo de avançar abreviando a espera.
— Boa tarde – digo, endireitando-me. – O meu nome é Damião. Sou o diretor.
— Boa tarde – responde ela, na sua voz cristalina onde é notório um certo nervosismo. – O meu nome é Cândida, sou…
— Sim, eu sei – interrompo, afastando-me para o lado oposto, como que abrindo todo o espaço da sala para que ela avance. – É aqui. Entre.
Ela entra, olhando para todos os lados com a lentidão de uma cautela premeditada. Move-se numa elegância tolhida dentro do tailleur preto que, indubitavelmente, confere à sua figura esbelta um toque de sedução que virá a revelar-se apropriado. Boa ideia, o tailleur preto. Transformo a inexpressividade do meu rosto num vago esgar de perversão e cobiça, no intuito de demonstrar o efeito provocado pela entrada dela. Cândida, porém, parece não reparar, perdida na observação dos limites do espaço e sem demorar na minha pessoa o mínimo relance.
— Aqui?... – diz ela, em modo evasivo, traduzindo uma surpresa misturada de insegurança. – Esta sala tem um ar tão frio…
Acerca-se da mesa e varre-a com um longo olhar, como se o tampo de fórmica ilustrasse, com a sua lisura monocromática, a frieza do local. Poisa nela a carteira que traz ao ombro e a pasta que segura na mão, deixando os dois volumes um pouco deslocados para o lado direito, junto da cadeira mais encostada, conforme era sugerido pelo posicionamento do cinzeiro no lado oposto. Depois, o olhar dirigido para a parede de vidro espelhado mas perdido num ponto indiferenciado à sua frente, contorna a mesa como se navegasse à bolina sem destino conhecido. Aproxima-se da parede e franze a testa, carregando a expressão do olhar como se quisesse ver através dela.
— E este espelho…
Não se percebe se manifesta um desagrado, exprime um receio ou pronuncia uma interrogação. Condimento a cobiça perversa do meu rosto com uma pitada de desdém.
— Você deve ser muito nova – comento, traduzindo na voz toda a intensidade da minha expressão facial. – O que é que esperava? Sofás de cabedal, reposteiros de veludo, uma janela com vista para o mar?...
Com passos largos e dominadores, aproximo-me da mesma parede, fitando Cândida a uma distância calculada.
— Isto é uma prisão, não é um hotel de luxo – continuo. E, após uma breve pausa, acrescento, num tom de desabafo melífluo: – Já é uma sorte poder entrevistá-lo assim, numa sala privada.
— Eu não lhe chamo sorte – a voz dela procura afirmar-se com maior segurança. – Trata-se de condições de trabalho. Sabe perfeitamente que eu recusaria entrevistá-lo se não fosse assim, numa sala privada.
Enquanto fala, aproxima-se da mesa pelo lado onde largou a carteira e a pasta de mão. Apoia-se na cadeira que está encostada à cabeceira e finca nela os dedos com a força de quem pretende marcar uma posição.
— Penso que a redação do jornal, que, segundo creio, falou diretamente consigo, foi clara quando combinou as coisas – prossegue, encarando-me, observando o modo como deixo o meu rosto abrir-se num sorriso malicioso. – O que foi?
— Ninguém falou comigo – replico, olhando na direção da parede espelhada e dando um passo atrás, como pretendendo alcançar a visão do reflexo de ambos num só olhar. – Houve apenas telefonemas em que vozes anónimas se cruzaram num entendimento circunstancial. A redação do jornal combinou as coisas com os serviços prisionais, mas… – a pausa permite-me uma rotação felina sobre os calcanhares, para encará-la diretamente – você e eu é que estamos aqui. Eu é que preparei o encontro e você é que vai falar com ele.
Acerco-me dela, numa deslocação sorrateira que acentua a intenção maliciosa da pausa do meu discurso.
— Não sei se ele achará muita… piada a esta entrevista – prossigo, já muito perto dela. – Nem sei se você achará muita piada.
Passo por trás dela, numa proximidade de tal modo insinuante que os nossos corpos quase se roçam. Sinto o impacto do perfume baunilhado dela como um calor doce e provocante que alastra por mim, despertando sensações e desejos. Ela dir-se-ia que estremece no seu íntimo, ligeiramente abalada por esta minha energia de homem poderoso e maduro que, ao rodeá-la, ameaço cercá-la com uma estranha força magnética que desprendo.
— Você sabe o que é que esse homem fez? – pergunto, encarando-a com uma concentração cheia de malícia.

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