Ainda estou debruçado sobre a mesa,
colocando o cinzeiro na rigorosa posição que lhe cabe, quando percebo que ela
acaba de chegar. Não é o toque quase impercetível dos sapatos de salto médio no
sobrado, nem qualquer outro ruído ou indício, que me dão a noção da sua
presença. Trata-se de uma intuição apurada, que sei ativar em grau absoluto
nestas circunstâncias, que me permite captar tudo o que ocorre no espaço
envolvente.
Sem endireitar o corpo, ergo a cabeça
muito devagar, fixando o olhar na parede espelhada para observar o reflexo da
imagem dela, ao fundo, à esquerda, no local da porta, o único acesso de
entrada. Sem denunciar qualquer emoção no meu rosto de uma inexpressividade
rigidamente controlada, não deixo de apreciar a figura dela, simultaneamente
frágil e curiosa, parada junto à porta numa posição estática que parece animada
por um impulso de locomoção, como se, dentro dela, o receio daquilo que a
aguarda meça forças com o desejo de avançar abreviando a espera.
— Boa tarde – digo, endireitando-me. –
O meu nome é Damião. Sou o diretor.
— Boa tarde – responde ela, na sua voz
cristalina onde é notório um certo nervosismo. – O meu nome é Cândida, sou…
— Sim, eu sei – interrompo,
afastando-me para o lado oposto, como que abrindo todo o espaço da sala para
que ela avance. – É aqui. Entre.
Ela entra, olhando para todos os lados
com a lentidão de uma cautela premeditada. Move-se numa elegância tolhida
dentro do tailleur preto que,
indubitavelmente, confere à sua figura esbelta um toque de sedução que virá a
revelar-se apropriado. Boa ideia, o tailleur
preto. Transformo a inexpressividade do meu rosto num vago esgar de perversão e
cobiça, no intuito de demonstrar o efeito provocado pela entrada dela. Cândida,
porém, parece não reparar, perdida na observação dos limites do espaço e sem
demorar na minha pessoa o mínimo relance.
— Aqui?... – diz ela, em modo evasivo,
traduzindo uma surpresa misturada de insegurança. – Esta sala tem um ar tão
frio…
Acerca-se da mesa e varre-a com um
longo olhar, como se o tampo de fórmica ilustrasse, com a sua lisura
monocromática, a frieza do local. Poisa nela a carteira que traz ao ombro e a
pasta que segura na mão, deixando os dois volumes um pouco deslocados para o
lado direito, junto da cadeira mais encostada, conforme era sugerido pelo
posicionamento do cinzeiro no lado oposto. Depois, o olhar dirigido para a
parede de vidro espelhado mas perdido num ponto indiferenciado à sua frente,
contorna a mesa como se navegasse à bolina sem destino conhecido. Aproxima-se
da parede e franze a testa, carregando a expressão do olhar como se quisesse
ver através dela.
— E este espelho…
Não se percebe se manifesta um
desagrado, exprime um receio ou pronuncia uma interrogação. Condimento a cobiça
perversa do meu rosto com uma pitada de desdém.
— Você deve ser muito nova – comento,
traduzindo na voz toda a intensidade da minha expressão facial. – O que é que
esperava? Sofás de cabedal, reposteiros de veludo, uma janela com vista para o
mar?...
Com passos largos e dominadores,
aproximo-me da mesma parede, fitando Cândida a uma distância calculada.
— Isto é uma prisão, não é um hotel de
luxo – continuo. E, após uma breve pausa, acrescento, num tom de desabafo
melífluo: – Já é uma sorte poder entrevistá-lo assim, numa sala privada.
— Eu não lhe chamo sorte – a voz dela
procura afirmar-se com maior segurança. – Trata-se de condições de trabalho.
Sabe perfeitamente que eu recusaria entrevistá-lo se não fosse assim, numa sala
privada.
Enquanto fala, aproxima-se da mesa pelo
lado onde largou a carteira e a pasta de mão. Apoia-se na cadeira que está
encostada à cabeceira e finca nela os dedos com a força de quem pretende marcar
uma posição.
— Penso que a redação do jornal, que,
segundo creio, falou diretamente consigo, foi clara quando combinou as coisas –
prossegue, encarando-me, observando o modo como deixo o meu rosto abrir-se num
sorriso malicioso. – O que foi?
— Ninguém falou comigo – replico,
olhando na direção da parede espelhada e dando um passo atrás, como pretendendo
alcançar a visão do reflexo de ambos num só olhar. – Houve apenas telefonemas
em que vozes anónimas se cruzaram num entendimento circunstancial. A redação do
jornal combinou as coisas com os serviços prisionais, mas… – a pausa permite-me
uma rotação felina sobre os calcanhares, para encará-la diretamente – você e eu
é que estamos aqui. Eu é que preparei o encontro e você é que vai falar com
ele.
Acerco-me dela, numa deslocação
sorrateira que acentua a intenção maliciosa da pausa do meu discurso.
— Não sei se ele achará muita… piada a
esta entrevista – prossigo, já muito perto dela. – Nem sei se você achará muita
piada.
Passo por trás dela, numa proximidade
de tal modo insinuante que os nossos corpos quase se roçam. Sinto o impacto do
perfume baunilhado dela como um calor doce e provocante que alastra por mim,
despertando sensações e desejos. Ela dir-se-ia que estremece no seu íntimo,
ligeiramente abalada por esta minha energia de homem poderoso e maduro que, ao
rodeá-la, ameaço cercá-la com uma estranha força magnética que desprendo.
— Você sabe o que é que esse homem fez?
– pergunto, encarando-a com uma concentração cheia de malícia.
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