domingo, 27 de março de 2016

Páscoa

Os sermões pronunciados pelo Padre António Vieira foram modelos de pregação que decerto deliciaram os apreciadores que os escutaram. Conhecemo-los graças ao aturado esforço do próprio pregador, que os passou a escrito, no que fez deles tesouros de parenética. Hoje, ao lê-los, degustamo-los como pérolas de literatura, requintes da delicada prosa barroca em que Vieira exercitou a Língua Portuguesa ao mais elevado nível.
No início de mais um Tempo Pascal, não resisto a partilhar um excerto do Sermão da Ressurreição de Cristo, pregado na igreja matriz de Belém do Pará, em 1658 (segundo a edição dirigida por José Eduardo Franco e Pedro Calafate, publicada pelo Círculo de Leitores em 2013). Porque, além do mais, ensina claramente no que consiste – e para que serve – a religião:

«Cuidam alguns que fazem grande fineza, e grande serviço a Deus em O servirem. Deus não tem necessidade de nada, nem de ninguém: Deus meus es tu, quoniam honorum meorum non eges [Sl 15, 2]; não tem necessidade de que nós O sirvamos: nós é que temos necessidade de O servir a Ele. São Francisco de Borja, recebendo em seu serviço os criados de casa de seu pai defunto, e conservando juntamente os que tinha da sua, respondeu aos que lhe diziam que eram supérfluos: Estos queden; porque tengo necessidad dellos; y essotros queden también; porque tenen necessidad de mi. Deste segundo género é que são todos os que servimos a Deus. Não se serve Deus de nós, porque tenha necessidade de nós; senão porque nós temos necessidade Dele. Ouçamos ao mesmo Deus: Nunquid manducabo carnes taurorum, aut sanguinem hircorum potabo? [Sl 49, 13]. “Cuidais que me fazeis grande serviço em me oferecer grandes sacrifícios? Porventura hei Eu de comer a carne dos vossos bezerros, ou beber o sangue vossos cordeiros? Da mesma maneira não tenho necessidade do vosso jejum, porque Eu não como o que deixais de comer; nem muito menos tenho necessidade da vossa reza, porque tenho Anjos, que com melhores vozes continuamente me louvam. Finalmente, não hei mister que deis esmola aos pobres, porque Eu os sustentarei com a mesma facilidade, com que sustento as aves do ar, e os bichinhos da terra; mas vós sois os que tendes necessidade de dar esmola, de rezar, de jejuar, e de me fazer sacrifícios”. Assim que havemos de buscar, e servir, e amar a Deus com pressuposto que quando O buscamos a Ele, nos buscamos, e nos achamos a nós; que, quando O servimos, nos servimos; quando O amamos, nos amamos; e quando gastamos com Ele, gastamos, e despendemos connosco. Bem se viu nas Marias. Compraram aromas: e quem se ungiu com eles? Elas, e não Cristo; porque tudo lhes ficou em casa. E o mesmo fora se ungiram ao Senhor, como lhe aconteceu a uma delas, a Madalena, que quando ungiu ao Senhor: Capillis capitis sui tergebat [Lc 7, 38], dava com as mãos, e recebia outra vez com os cabelos; senão que o recebia melhorado, como tocado em tão soberanas relíquias.»

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