Porque não podemos fechar os olhos: as imagens
acendem-se-nos na mente, retratos alucinantes e invasivos como labaredas.
Porque não basta cerrar os ouvidos: o grito ecoa no íntimo, pulsações sonoras e
retumbantes como explosões.
Porque somos nós, uma parte de nós que é o todo
também, esta humanidade sonhadora e decadente, compassiva e perversa,
voluntariosa e inerte. Somos nós de ambos os lados, estamos simultaneamente na
perseguição e na fuga, no acolhimento e na rejeição, na angústia e no cinismo.
Somos mão estendida e punho fechado, braço erguido ao alto e arma apontada,
sorriso sereno, lágrima compungida e cuspidela de ódio. Somos nós de ambos os
lados, somos nós de todos os lados e não podemos assistir sem nos dilacerarmos
por dentro neste misto de solidariedade e culpa, acusação e remorso. Vida e
morte.
Não somos «migrantes», essa designação anódina que
nos retira uma identidade de origem sem nos conceder o reconhecimento de um destino.
Seremos refugiados, porque deixámos a cratera de tudo o que nos dizia em busca
de uma planície onde novamente possamos dizer-nos, fugimos da cova que nos
soterrava já configurados com o horizonte que nos liberte. Não estamos
perdidos, conhecemos o inferno de que queremos escapar, sabemos o rumo do
paraíso que nos prometemos. E não aceitamos que nos ignorem num purgatório de
encolher de ombros, que nos dispam a pele humana das nossas emoções e crenças,
que nos descarnem em meros tópicos de análise política inanimada. Pedimos o
refúgio a que temos direito, exigimos a salvação que suplicamos. Porque somos
nós.
Somos nós e estamos vivos, mesmo naqueles que
morrem. E morremos um pouco, mesmo naqueles que sobrevivem.
Somos nós, de ambos os lados. De todos os lados.
Somos nós. Somos nós…
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