sábado, 3 de maio de 2014

Almada Negreiros

Recordo-me de ter lido pela primeira vez este texto no enunciado de um teste, quando era aluno do 8º ano. Sobre ele tive de responder a questões de interpretação e gramática. Já não me lembro quais eram, nem o que escrevi a propósito delas. Mas o texto permaneceu na minha memória, inapagável na sua profundidade e beleza.
É isto, a literatura!

MÃE
Poema de Almada Negreiros

Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei.
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
  
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
  
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
  
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!

2 comentários:

  1. (tentei colocar o comentário, mas parece que não ficou)

    Eu percebo a genialidade de almada negreiros, compreendo a inovação que trouxe á cultura portuguesa, o contributo que deu a modernismo português, mas não consigo admirar uma pessoa que esteve ao lado do regime mais cinzento do Portugal moderno, que fez campanha pela aprovação de uma constituição que retirou a todo um povo o valor político que considero mais fundamental, a Liberdade.
    E provavelmente o Professor admira-o apenas pela escrita, mas nem por isso o consigo fazer, pelo menos eu.

    Os melhores cumprimentos.

    ABP

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    1. Obrigado pelo comentário.
      Eu admiro Almada Negreiros pela sua capacidade criativa (na escrita, no teatro, nas artes plásticas e praticamente em tudo o que produzia). As suas opções ideológicas e políticas são, obviamente controversas, estão ligadas à euforia futurista que abraçou na juventude e, por isso, não podem desligar-se do contexto histórico em que ele viveu e ao qual decidiu adaptar-se de determinada forma. Embora compreenda a opinião que exprime no comentário, considero que apreciar uma obra literária e artística não significa concordar inteiramente com o escritor ou artista. De certo modo, acho que a literatura e a arte promovem comunhão entre as diferenças, na transcendência do Belo.

      Cumprimentos!

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