sexta-feira, 14 de março de 2014

Dizer a Imagem 2: Chumbo


Virá o dia em que serei capaz de erguer os olhos dos pés fincados no quadriculado dos dias mornos. Nesse dia, as pálpebras semicerradas ao vento frio e quente, hálito múltiplo dos sonhos de que sempre fugi, hão de deixar-me perceber as sandálias de Hermes que nunca ousei acreditar, porque o conformismo magnético das solas de chumbo sempre me atraiu o olhar para a terra firme da cobardia padronizada.
Virá o dia em que serei capaz de gritar a revolta do peão indignado com as regras do xadrez obsceno. Nesse dia farei tremer a terra com um simples passo, um avanço subversivamente oblíquo, captura en passant de todas as inércias que me querem parado.
Virá o dia em que acontecerá a libertação sonhada. Até lá, curvo o olhar para o chão quadriculado, desalinho os pés numa ilusão de avanço, arrasto o chumbo numa esperança de asas. Retenho em mim esta imagem de um sonho que faço existir em palavras.
E morro mais um dia.

(Fotografia de Jorge Figueiredo)

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