terça-feira, 4 de junho de 2013

Ficção I - O ato inerme e vulnerável

De pé, no cais da estação, a espera. A gabardina azul escura de gola levantada, a camisa roxa por baixo, a banalidade das calças jeans, toda a roupa envergada como uma couraça contra a multidão desconhecida anónima. A multidão indiferente hostil: indiferente na sua hostilidade, hostil porque indiferente.
O silvo, a percussão sucessiva ritmada, o cheiro mecânico da massa metálica em movimento: a aproximação do comboio. A paragem ruidosa da composição, o abrir seco das portas, a entrada. O movimento da gente, continuidade mecânica da deslocação das carruagens.
A busca de um assento, a luta por um assento. A pasta de cabedal em riste como arma de gladiatura naquela arena claustrofóbica. A conquista de um lugar, as pernas fletidas sobre o estofo como um gesto de polegar imperial erguido, a couraça azul escura a tocar o padrão aveludado do encosto num roçagar vitorioso.
Depois, o arranque, o comboio em marcha. A gente toda parada na sua deslocação. A descontração da gabardina, o abrir do fecho da pasta como um gesto de deposição dos ferros da batalha. Surdir o livro lá de dentro como um truque ilusionista, um arabesco de transcendência. E ler. Abstrair-se de tudo, esquecer a imprescindível couraça, ignorar a inevitável indiferença hostilidade, centrar-se no ato inerme e vulnerável. Ler.
O comboio em andamento, a gabardina imóvel, o corpo sentado, o olhar mergulhado, o cérebro aceso, o espírito elevado. A vida toda. Ler.

4 comentários:

  1. E há, neste post, aquele que me leva ao Grande Cais, sonho que anseio num palco... Quem sabe, um dia.

    Abraço.

    Paulo

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    1. Creio que tudo o que fazemos na vida é em demanda do Grande Cais (seja o que for que lhe chamemos...). É isso que torna sublime o nosso dia a dia prosaico, é isso que permite que nos realizemos em atos banais.
      Sinto que a leitura nos leva lá, por isso ela é tão necessária. Quanto ao palco... é onde lemos e somos lidos ao mesmo tempo, por isso nos preenche e inquieta tanto!...
      Obrigado, companheiro.

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  2. Também vejo este texto, em voz-off, talvez num início de um filme (pouco hollywoodesco), que nos despertará mais à frente para a verdadeira essência da condição humana. Deixa essa imagem muito nítida.

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    1. Curiosa, a observação sobre a busca da verdadeira essência da condição humana. É precisamente isso que move a figura da gabardina azul (não é o que nos move a todos?). O que nos cria alguma expetativa sobre qual será o livro que está a ler...
      Obrigado.

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