Não
é preciso muito para fazer bom teatro. Basta que o pouco que se tem seja muito
bom. RAPE – Estudo de um Ingénuo Amor é a prova disso mesmo.
O
texto: há mentiras que nos fecham a ponto de nos tornarem prisioneiros da
verdade que ocultamos; há obsessões que se abrem dentro de nós a ponto de
criarem a única verdade pela qual conseguimos olhar o mundo. O autor, Andre
Neely, esgrime estas duas armas com impressionante mestria, lançando-as na
arena de uma história polémica. Ainda que possa ser algo previsível (pelo menos
para quem partilha estes trilhos da escrita criativa), a peça é de uma
incomodativa profundidade e de uma eloquência poderosa. Intensa. Como sabe bem
ir ao teatro e deparar com um texto verdadeiramente bem escrito!...
A
encenação: limpa e eficaz, revela uma leitura muito atenta e inteligente do
texto. O espaço vazio das solidões (in)comunicantes, o frenesim das obsessões e
das fugas, a escuridão dos silêncios e das verdades escondidas. As distâncias.
E a luz a conduzir-nos, a dirigir o nosso olhar, a manipular a nossa visão da
realidade. Como a mentira. E a reter-nos ali, a sufocar em nós a vontade de
partir. Como a obsessão. O encenador, Leonardo Garibaldi, servindo o texto,
concebeu uma gaiola de criatividade, estruturou o espaço e o tempo de modo a
prender os atores (e o público?) na liberdade de ação que lhes concede.
As
interpretações: Rita Silvestre e Rui Westermann, dois jovens atores de quem
tenho tido o privilégio de acompanhar a evolução, confirmam neste trabalho a
sua maturidade. Ambos seguríssimos tecnicamente (corpo, voz e ritmo), é na
expressão de sentimentos que o contraste se define: ele é contido o suficiente,
ela é necessariamente avassaladora; ele refugia-se num logos comedido, ela explode num pathos
desgovernado. Desarmado e omnisciente, ele; perdida e demolidora, ela. Rui espera,
Rita supera: a isso os condenam as suas personagens.
O
modo como tudo acontece delicia-nos até à dilaceração. Duvidamos cinicamente da
mentira dele, demasiado sincera para não ser verdadeira; ao invés, acreditamos
dolorosamente na obsessão dela, sofrida demais para não ser um engano. E
assistimos, com o regozijo da nossa impotência, à destruição daqueles dois
seres tão brilhantemente construída. Intrigados até ao êxtase com o mistério
das personagens, fascinados até à dor com o trabalho dos atores, conseguiremos ver
ali o espelho de nós próprios? Verdade do teatro, mentira das nossas vidas…
Não
é preciso muito para fazer bom teatro. Basta que o pouco que se tem seja muito
bom. RAPE – Estudo de um Ingénuo Amor é
a prova disso mesmo: texto, encenação, interpretações. E uma produção
competente, capaz de combinar tudo isto em doses certas para no-lo servir em
forma de arte. De inquietação. Inquietarte.
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