Quereria reinscrever-me no tempo para recordar os dias
em que o meu coração fervia em ânsias de martírio. Não fosse a doença que me
acometeu ao chegar a Marrocos e por lá me quedaria, decerto morrendo às mãos do
Islão, na prática assumida de anunciar o meu credo. Ao infundir-me uma moléstia
que não desejei, foi o próprio Senhor a quem sempre me entreguei que me sonegou
às mãos do destino que eu buscava, mais certo Ele do valor da minha vida que
ciente eu próprio do sentido que pretendia dar-lhe.
No suposto regresso convalescente à terra lusitana onde
nasci, novo transe – traição da natureza criada ou lealdade do Criador da
natureza – me desviou: as peripécias de uma tormenta marítima desaguaram-me na
Sicília e, como levado por imprevisível onda, transportaram-me a Assis e
fizeram-me presente ao Capítulo da Ordem dos Frades Menores que abracei por
inspiração daqueles pregadores que conheci em vida antes de rumarem ao norte de
África e invejei na morte mártir que lá acharam.
Em Assis conheci o Irmão Fundador, que encontrei
rodeado dos seus discípulos de origem. Sempre foi dito que ele profundamente se
admirou da minha pessoa, mas essas versões da minha história mais não são que
máscaras de lisonja ocultando o genuíno espanto que eu próprio senti perante os
abismos de santidade que irradiavam de todos os membros daquela comunidade, e
de Francisco mais que de qualquer outro. Acreditei, ali mais que nunca, que
Deus é um abismo de luz que se alcança penetrando o nosso próprio íntimo, num
mergulho que é feito dos gestos com que se assiste e alivia a pobreza alheia. A
isso devotei a vida, cuidando que o meu saber acumulado – o trivium e o quadrivium aprendidos em Santa Maria Maior de Lisboa e
aperfeiçoados em Santa Cruz de Coimbra – eram armas inúteis nesse processo,
mais valendo sepultá-las no silêncio da meditação fecunda do que alardeá-las
num exibicionismo estéril.
Na verdade, nunca fui acertado juiz de meus
méritos, pois foi precisamente a minha erudição, em conjunto com a eloquência
que dela brotava, que melhor me permitiram servir a Ordem, a Igreja, a
humanidade e, em suma, o próprio Deus por quem sempre vivi. O tempo dos meus
dias terminou em Pádua, sem que tenha tornado a ver a terra onde nasci e da
qual mais tarde me fizeram patrono, consequência de ter sido canonizado (com
uma brevidade que me deixa perplexo) e reconhecido como taumaturgo (com uma distinção
que me esmaga a simplicidade).
Quereria reinscrever-me no tempo para, na
eloquência que me atribuem, recordar aos homens os dias da minha vida e o que
de mais importante deles ficou. Não esse mero folclore de santo casamenteiro,
não apenas essa invocação chã do meu nome entre acordes de marcha popular,
rimas de manjerico e cheiro a sardinha assada. Quereria reformular-me na imagem
nítida das práticas disciplinadas da oração e do estudo – as virtudes que
verdadeiramente me tornaram justo diante de Deus e valioso para os homens – em
vez de continuar embaciado na velatura opaca dos prosaicos milagres que me
atribuem e que fazem esquecer que, associado à graça divina, é o mérito de cada
um que pode elevá-lo, não a complacência ou simpatia por narrativas mágicas da
vida de qualquer outro.
Quereria reinscrever-me no tempo para aproximar-me
dos homens que são como eu fui. Porém é condição dos santos – mesmo de um santo
popular como eu – permanecerem encarcerados na sua seráfica beatitude, a uma
eternidade de distância…
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