domingo, 6 de outubro de 2019

Texto centésimo

Abro a janela num gesto claro de manhã de outono, acolho o sol generoso que me inunda, luz e calor, graça que nunca agradeço bastante. Na calma matinal respiro uma vontade de chuva, bela na sua necessidade, perfeita no seu incómodo. Vem-me um sabor agridoce de recordações ambíguas: o céu escurecido largando o seu chumbo em descargas que me inundam de tristeza e desconforto; a seguir o cheiro colorido da terra depois da chuva, espécie de arco-íris de frescura interior, algo como um odor de gravidez que me lembra origem e ressurreição.
Abro a janela num gesto claro de manhã de outono. Mesmo em pleno dia, o negrume da cidade sempre me ensinou, talvez por privação, a policromia da natureza: o castanho da terra, o verde da floresta erguida a recortar o azul do céu por entre a alvura das nuvens, a transparência camaleónica da água verdejante na melodia dos regatos, azulada no espelho do mar, cinzenta no empedernido das fontes, morena na tepidez dos oásis; por ser incolor dá-se a todas as cores e, assim, tudo nos dá.
Abro a janela num gesto claro de manhã de outono, o horizonte de civilização faz-me ajoelhar numa vergonha de culpado, o meu braço aberto pesa-me como cabeça deposta no cepo, aguardando a merecida pena. Pecamos contra a natureza que nos castiga sem querer, o seu movimento de retribuição é uma luta surda entre a gratuidade e a cobrança. Somos nós os devedores: espezinhamos a terra que nos é pródiga, corrompemos o ar que nos vivifica, rebaixamos o fogo a carrasco de uma devastação autofágica, esbanjamos a água de que somos feitos, desprezamos a vida em todas as espécies possíveis, na nossa também. Sabemos o que continuamos a querer ignorar, somos insensíveis porque recusamos sentir.
Abro a janela num gesto claro de manhã de outono, a brisa que nasceu pura abraça-me numa fraqueza poluída, é um choro de mãe traída pelos filhos que amamenta. E peço ao Deus de tudo que nos desperte uma sensatez que nos salve. Em cada gesto nosso. Hoje.

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