Abro a janela num gesto claro de manhã de outono,
acolho o sol generoso que me inunda, luz e calor, graça que nunca agradeço
bastante. Na calma matinal respiro uma vontade de chuva, bela na sua
necessidade, perfeita no seu incómodo. Vem-me um sabor agridoce de recordações
ambíguas: o céu escurecido largando o seu chumbo em descargas que me inundam de
tristeza e desconforto; a seguir o cheiro colorido da terra depois da chuva,
espécie de arco-íris de frescura interior, algo como um odor de gravidez que me
lembra origem e ressurreição.
Abro a janela num gesto claro de manhã de outono.
Mesmo em pleno dia, o negrume da cidade sempre me ensinou, talvez por privação,
a policromia da natureza: o castanho da terra, o verde da floresta erguida a
recortar o azul do céu por entre a alvura das nuvens, a transparência
camaleónica da água verdejante na melodia dos regatos, azulada no espelho do
mar, cinzenta no empedernido das fontes, morena na tepidez dos oásis; por ser
incolor dá-se a todas as cores e, assim, tudo nos dá.
Abro a janela num gesto claro de manhã de outono, o
horizonte de civilização faz-me ajoelhar numa vergonha de culpado, o meu braço
aberto pesa-me como cabeça deposta no cepo, aguardando a merecida pena. Pecamos
contra a natureza que nos castiga sem querer, o seu movimento de retribuição é
uma luta surda entre a gratuidade e a cobrança. Somos nós os devedores:
espezinhamos a terra que nos é pródiga, corrompemos o ar que nos vivifica, rebaixamos
o fogo a carrasco de uma devastação autofágica, esbanjamos a água de que somos
feitos, desprezamos a vida em todas as espécies possíveis, na nossa também.
Sabemos o que continuamos a querer ignorar, somos insensíveis porque recusamos
sentir.
Abro
a janela num gesto claro de manhã de outono, a brisa que nasceu pura abraça-me
numa fraqueza poluída, é um choro de mãe traída pelos filhos que amamenta. E
peço ao Deus de tudo que nos desperte uma sensatez que nos salve. Em cada gesto
nosso. Hoje.
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