Como
dizer-te a memória do que nunca aconteceu?... O aceno vago de te ver passar no
outro lado da rua leva no gesto o desejo voluptuoso de uma carícia aveludada que
não. O beijo assético na face de te encontrar por acaso contém a ânsia
indizível do abraço de sentir o teu corpo fresco de primavera, quente do
perfume de ti que nunca. A conversa circunstancial à mesa do café arrasta por
dentro a vontade sem cura de uma intimidade subterrânea insaciável, de corpo e
alma que jamais.
Como
dizer-te a memória do que nunca aconteceu?... Conheço-te e nunca estive
contigo. Coincidimos numa existência que nos martiriza nesta partilha de espaço
e tempo em que, presentes um ao outro, nunca poderemos pertencer-nos. Porque há
em ti uma juventude de sonhos solteiros que zarpam para um mar alto distante da
minha velhice celibatária ancorada num porto de cobardias recalcadas.
Como
dizer-te a memória do que nunca aconteceu?... Teríamos podido ser felizes se,
no jogo da vida, a distribuição das cartas nos favorecesse com trunfos simultâneos.
Mas agora já não e depois ainda jamais. Estou contigo e não poderei
conhecer-te, porque a tua juventude de sonhos solteiros é o avesso da minha
velhice celibatária. Resta-nos, pois, este olhar com que nos contemplamos de
costas voltadas, este abismo de gerações em que vemos por dentro das nossas
existências separadas a vida comum de que somos feitos.
Como
dizer-te a memória do que nunca aconteceu?... És a aventura do meu medo, eu sou
a imobilidade do teu impulso. Cascata límpida do meu lodo, amarga esclerose do
teu florir. E assim, neste inverso de sermos, lembro-me em ti de tudo o que até
agora, lembro-te em mim de tudo o que a partir daqui. Tu trazes-me à memória
tudo o que nunca. Mas… como dizer-te?...
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