Sou apenas no que escrevo. Fora disso sou toda a
minha vida visível, no cinzento das pressas do dia a dia, na policromia às
vezes desbotada de todas as pessoas que me rodeiam, no arco-íris da sala de
aula onde me entrego numa reinvenção quotidiana. Na frágil lamparina do teatro
amador, que goteja na escuridão a teimosia da sua chama votiva. E no imenso
ofuscante clarão dos que me são queridos, que me ardem por dentro como as
labaredas aveludadas duma floresta incendiada, duma sarça ardente imensurável.
E sobram as longas noites de solidão fria, onde me
espreito outro na escuridão das insónias inundadas de imaginação e de discurso,
num turbilhão de cascata. Onde me vejo este espaço vazio que me sinto, entre as
amarras e a busca
É então que sou outro, o da escrita. Outro que me
deixa ser mais eu próprio, que me faz ser mais eu próprio nele. Porque me solta
as amarras e me amarra à busca.
Não somos realmente nós sem o sermos no papel...
ResponderEliminarMesmo sem nos apercebermos, e é como se nos fugisse dos dedos em formigueiro, o que passa em tinta para o papel - ou as palavras de digitamos numa máquina que acaba por nos exprimir em escrita mais racionalizada - é mais do que nós e, no entanto, diz-nos a nós próprios com mais clareza do que qualquer reflexão, fazendo-nos aperceber do que é realmente a condição humana: frágil e, no fundo, entregue a caprichos devoradores de "bichinhos escritores"... é tão óbvio que não somos nós a controlá-los! E, no entanto, eles definem-nos.
É superior. É uma outra coisa qualquer que nos cria à margem da realidade.
Obrigado pela partilha.
EliminarÉ verdade que o ato da escrita é superior, é uma outra coisa qualquer. Transcende-nos, ou nós transcendemo-nos nele. Porém, acredito que é algo que joga a nosso favor: ao projetar-nos para além de nós mesmos (ao criar-nos à margem da nossa realidade) não nos pulveriza; pelo contrário, unifica-nos e dá-nos consistência, devolve-nos a nós mesmos muito mais. A escrita resolve a nossa necessidade, dá-nos (um) sentido. E por isso vale a pena!
Sim, claro que joga a nosso favor.
ResponderEliminarAcho apenas estranha ou curiosa aquela sensação de "inspiração divina" que preenche e obriga os dedos a pegarem num instrumento que escreva.
Curiosa e, por vezes, reveladora de nós próprios. Cria-nos uma outra perspetiva da realidade que, usando-a corretamente, podemos ser muito mais na realidade dos outros. Por vezes simplifica, por vezes amplifica, mas revela sempre.
E sim, vale muito a pena, sempre.
Concordo inteiramente. E sublinho o aspeto em que refere que, pela escrita, podemos ser muito mais na realidade dos outros. É essa forma de «intervenção» que rompe a solidão do ato de escrever e faz do escritor um comunicador, liga-o aos outros que leem ou hão de ler.
EliminarComo digo noutro comentário neste blogue: o ato de escrever é a solidão mais acompanhada que existe. E agora acrescento, ou reformulo: é a solidão mais solidária que existe.