terça-feira, 22 de outubro de 2013

Texto décimo sétimo

Era de manhã. Cedo, mas ele não sabia precisar a hora certa. Ainda não usava relógio porque não havia para quê. A decifração do código hermético do mostrador era, aos quatro anos, uma tarefa transcendente, algures a meio caminho entre a contemplação e a pesquisa.
Chegou pela mão da mãe, porque esse era um tempo em que ainda fazia sentido aquele aconchego de uma mão maior envolvendo a sua. Havia uma porta em arco, solene e robusta, que talvez fosse castanha, mas que ele apenas recorda na cor verde escura em que foi pintada de novo, anos mais tarde. A porta estava aberta, porque havia muitos meninos como ele, que chegavam aconchegados por mãos maiores que envolviam as suas, como certezas repletas que abafavam os medos apertados que se deixavam conduzir.
Transpondo o umbral, ele notou a penumbra do átrio, simultaneamente misteriosa e lúgubre. Os outros meninos pararam e ensaiaram um recuo estarrecido, prontamente combatido pelo puxão firme das mãos maiores que comandavam sem apelo todos os sobressaltos. Ou talvez não tenha havido recuo nem puxão nem sobressalto, mas apenas a consciência, da parte dele, de uma reação distinta quando, soltando a mão do aconchego, sorriu por dentro do seu rosto inexpressivo e avançou pelo chão de tijoleira até a um banco corrido, encostado à parede lateral. Sentou-se, porque sabia que vinha para ficar. A mãe dissera-lho, antes de saírem de casa e, por isso, ele interiorizara o facto com uma certeza tão absoluta como a noção da sua própria existência. Ou mais ainda. Os outros meninos permaneciam de pé, junto das mães que procuravam largá-los das mãos maiores com a mesma repleta certeza com que os tinham agarrado e trazido até ali.
Ele observava atentamente aquele medo que subia das mãos largadas para o encolhimento dos rostos. Em alguns deles, esse medo extravasou em lágrimas mal contidas que ele não percebeu, mas de que estranhamente se compadeceu. A mãe dirigiu-se a ele e ele viu que os passos de aproximação eram um movimento de despedida.
“Agora ficas aqui com os outros meninos”, disse a mãe, “Eu vou-me embora e volto logo à tarde para te vir buscar”.
Ele fez o seu rosto sorrir por fora do seu íntimo inexpressivo e não disse nada. A docilidade com que se deixara conduzir desde casa, desde a decisão da mãe, fora já eloquência bastante e nada mais havia a dizer. Porque ele não considerava a necessidade de resposta que a mãe sentia, a insegurança que criava nela aquele sorriso vazio com que pretendia confortá-la. A mãe beijou a imobilidade dele e deu meia volta, engolindo a ânsia de palavras com que sempre se afastava dele e que ele nunca satisfazia, sem que ela soubesse porquê. Ou sabendo um porquê que não era o dele, porque o silêncio que, para ela, era frieza e egoísmo, para ele não passava de um modo de exprimir a insignificância que sentia relativamente a si próprio.
E ficou na escola.

1 comentário:

  1. Obrigado pelo comentário.
    É mesmo de lembranças que se trata, do modo como elas se instalam e permanecem em nós, do modo como elas perduram e se fazem memória.
    O escritor é um colecionador de memórias e um degustador do eco interior delas. Só isso permite encontrar as palavras adequadas para pô-las por escrito. Para que sejam lidas por outros e se tornem história.

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