segunda-feira, 8 de julho de 2013

Ficção III - "Ajeitas-te bem, rapaz!"

Lavava pratos um após outro, como quem folheia as páginas de um livro. Todos os dias, em horário fixo. Passava repetidamente o esfregão para os desengordurar, com a energia de quem relê uma frase mais rebuscada em busca do sentido preciso. Era zeloso e diligente no trabalho, como se aquela fosse a tarefa mais nobre e necessária do mundo, como se o sentido da sua existência se resolvesse no alumínio daquele lava-loiça sobre o qual se debruçava.
“Ajeitas-te bem, rapaz”, dizia o encarregado da copa, ao passar por ele, certo de que o animava com o seu tom de encorajamento.
Ninguém gosta de lavar pratos. Todos os dias, em horário fixo. Ele superava o desgosto desenvolvendo uma certa insensibilidade ao ato, alicerçada numa secreta sublimação. Sabia que, do outro lado da copa, na sala iluminada, um empregado mais velho, de camisa engomada e laço preto, dispunha aqueles mesmos pratos, enxutos e reluzentes, nos tampos atoalhados de mesas reservadas, diante de homens de negócios revestidos de burocracia, mulheres vaporizadas nos vestidos desprendidos de uma noite de gajas, casais assumidos ou furtivos, famílias celebrativas ou simplesmente reunidas em busca de funcionalidade. Mas não era isso que o animava.
Terminado o horário fixo, despia o avental e voltava a envergar a gabardina azul, levantava a gola e pegava na pasta de cabedal, virava costas à sala iluminada onde nunca entrara e saía do restaurante pela porta dos fundos, que deitava para a rua mais curta até à estação de comboios.
“Ajeitas-te bem, rapaz”, ecoava-lhe na mente a antífona do encarregado da copa.
Alcançava a estação invariavelmente quatro minutos antes da chegada do comboio. Esperava, entrava, conquistava um lugar, desarmava-se na abertura da pasta de cabedal, escancarava-se no livro aberto de que retomava a leitura. Era o primeiro volume de Os Miseráveis. Ele cumprira o horário fixo de avental com a mente focada na desgraça de Fantine.
Mais quinze dias a folhear pratos engordurados sobre o alumínio do lava-loiça e já poderia pagar a inscrição no curso de Literatura.
“Ajeitas-te bem, rapaz”.

2 comentários:

  1. A tónica poderá não ser tão amarga. O rapaz da gabardina azul lava pratos com a dedicação com que folheia as páginas das obras que lê, a ponto de gostar do que faz por isso lhe abrir a perspetiva do curso com que sonha. O bem maior opera uma espécie de alquimia sobre as tarefas menores que se exercem em seu nome: transforma-as em algo mais precioso. Por isso, quem é habitado por uma paixão arrebatadora pode pôr o entusiasmo dessa paixão em tudo o que faz, ainda que distinto dela, porque a ela conduz. E pode gostar do que faz, ainda que não faça aquilo de que mais gosta. Creio que é esta a lei da vida...

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  2. E, enquanto os resultados não chegam, vive-se da paixão que alimenta o esforço e a dedicação. É por isso que os apaixonados são felizes: sofrem por uma felicidade vindoura que é, a seus olhos, tão grandiosa que conseguem antecipá-la no próprio sofrimento que a ela conduz. Talvez por isso se possa dizer que ser feliz não é chegar a uma meta, mas caminhar para ela.

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